Ciência Espírita:



PROPOSTAS DE MÉTODOS NA FILOSOFIA DA CIÊNCIA:
 No inicio do século XX surge uma corrente na epistemologia chamada de Positivismo lógico, começando seu núcleo inicial no Circulo de Viena, na década de 1920. Esse movimento, por mais que tenha sido criticado constantemente durante o século XX e XIX, ainda exerce grande repercussão entre cientistas, mais do que entre filósofos. Tais epistemólogos do Positivismo lógico quiseram propor uma visão de ciência cujas bases eram o indutivismo. O método indutivo funciona de maneira diferente do método dedutivo, que constituí a lógica. No método dedutivo as conclusões seguem necessariamente das premissas, pelas regras da lógica. Já no método indutivo, mesmo que as premissas estejam corretas, a conclusão não é necessariamente verdadeira.

 Se minha premissa é que todo homem é mortal, e minha premissa é que Sócrates é homem, necessariamente a conclusão que se segue é que Sócrates é mortal. Se eu parto da premissa que quase todos os livros de filosofia são chatos e que este é um livro que trata de filosofia, não se segue necessariamente que esse livro seja chato.
  
 Para o indutivismo a ciência começa pela observação de fatos singulares, partindo daí para afirmações universais, como leis ou teorias. Para tal corrente, a observação deve ser completamente pura, sem qualquer ideia antecipada ou diretriz teórica. Basearam-se muito em Wittgenstein, que acreditava que proposições significativas podem ser reduzidas em proposições elementares. Essa é a visão vulgar de ciência que se tem hoje em dia. Muitos crêem que a ciência começa partindo da experimentação para chegar às leis explicativas. Contudo essa visão apresenta certos problemas, pois não é possível logicamente deduzir verdades universais de observações particulares. Esse problema já era apontado bem antes por Hume. Vamos ilustrar tal dificuldade com o seguinte caso. Imagine que um indutivista proponha extrairmos a lei segundo o qual todo metal se expande ao ser aquecido da observação singular de metais aquecidos. Para o indutivista, quanto mais metais fossem observados, e em diferentes circunstâncias, melhor. Contudo, quantas observações são necessárias para afirmarmos peremptoriamente que todo metal ao ser aquecido se expande? Não há contradição lógica alguma em se dizer: “todos os metais que havíamos observados até agora se expandiam ao serem aquecidos, mas acabamos de encontrar certo metal que não se expande”. Se tal princípio indutivista não pode ser justificado logicamente, resta apenas a justificação empírica. Mas em tal caso, incorreríamos numa lógica circular. Usaríamos o indutivismo para provar o próprio indutivismo, afirmando algo como: “o indutivismo sempre funcionou então deve continuar funcionando”. Tal afirmação nem é verdadeira. Pois a ciência progressiva como é se corrige e vem se modificando ao decorrer do tempo. E quantas vezes um experimento precisaria ser refeito para se tornar lei? Cem vezes? Mil vezes? Há certos experimentos em aceleradores de partículas que foram realizados apenas uma ou poucas vezes e nem por isso são menos válidos. Além disso, em quantas situações e circunstâncias diferentes tal experimento deveria ser feito para ser válido? Há infinitas variedades de circunstâncias em que determinada observação de um fenômeno pode ser feita. Será que, por exemplo, o sexo dos cientistas, as dimensões da sala, a cor do sapato de um dos experimentadores importam e influenciam os resultados? É exatamente por termos uma diretriz teórica anterior ao experimento que sabemos que não é necessário variar nisso. É curioso notar que no experimento de Hertz, por exemplo, as dimensões do laboratório eram significativas.

 Durante o século XX vários filósofos criticaram fortemente essa noção de ciência, entre eles Popper, Kuhn e Lakatos. Uma das questões atacadas foi a de que a ciência começa pela observação. Segundo Karl Popper (1902-1994) a teoria, mesmo que rudimentar e expectativa, sempre precede a observação.  Popper propõe como alternativa ao indutivismo o falsificacionismo. Para ele teorias não podem ser provadas, através do método indutivo, como verdadeiras ou provavelmente verdadeiras, mas são sempre conjecturais (hipóteses). Mas para uma teoria ser considerada cientifica, ela deveria ser falseavel, isto é, passível de ser provada falsa. Não se pode provar a veracidade de uma proposição geral partindo de observações particulares, mas pode-se falsear uma proposição geral assumindo como verdadeira uma proposição de observação particular. No exemplo usualmente usado, pode-se falsear a afirmação geral de que todos os cisnes são brancos, achando um cisne de qualquer outra cor. Não adianta procurar por cisnes brancos para confirmar minha hipótese, mas deve-se procurar pelo exemplo que contrarie minha teoria. Para Popper a ciência começava com problemas, não com a observação. É a partir de uma observação que contrarie minha hipótese prévia que eu proponho novas hipóteses e o conhecimento científico se desenvolve. 
 Para ele teorias científicas não eram formadas a partir do método indutivo, partindo de uma observação neutra e completamente objetiva. Não se pode dizer que uma teoria é verdadeira, mas apenas que é melhor que as anteriores, pois conseguiu sobreviver aos testes no qual as antecessoras falharam. A experimentação serviria para descartar aquelas hipóteses falsas. Nisso estaríamos mais próximos da verdade, pois se não podemos saber quais são verdadeiras, poderíamos, de acordo com o falsificacionismo, determinar quais são falsas. Uma teoria deveria ser preditiva, fazendo predições arriscadas que poderiam falsificar determinada hipótese. Um exemplo disso podemos encontrar na Teoria da relatividade de Einstein. Ela previu que a luz é desviada pela deformação no espaço-tempo e tal efeito poderia ser observado durante um eclipse total do Sol. Em 1919 esse fenômeno foi observado durante um eclipse solar em fotografias, uma delas tirada em Sobral, no Ceará.

 Há certos problemas apontados pelos filósofos posteriores no falsificacionismo, como o problema Duhem-Quine (Pierre Duhem: físico e filósofo da ciência francês que viveu entre 1861 e 1916 e Willard Van Orman Quine filósofo americano que viveu entre 1908 e 2000) que demonstra que teorias não são proposições universais isoladas, mas complexos conjuntos delas. Dessa forma, caso alguma previsão de uma teoria venha a ser contrariada, não teríamos como saber se o erro está na teoria ou nas hipóteses auxiliares, ou mesmo em qual parte da teoria está o erro. Teorias enfrentam o tribunal da experiência coorporativamente. Contudo, o falsificacionismo mesmo tendo sido criticado posteriormente, não se pode deixar de dizer que foi um significativo avanço em relação ao positivismo lógico. Outros filósofos da ciência tentaram superar essas criticas, entre eles destacam-se Kuhn e Lakatos. Imre Lakatos vai propor a ideia de programa de pesquisa, que vamos analisar a seguir.

PROGRAMA DE PESQUISA. CINTURÃO PROTETOR. EURÍSTICA NEGATIVA E POSITIVA.
 
 Um programa de pesquisa constitui-se de hipóteses que servem de guia e de base para as pesquisas futuras. Esse programa é formado de um núcleo firme, que é dado como irrefutável pelos seus proponentes. Esse núcleo é protegido por um cinturão protetor, constituído de hipóteses auxiliares. Se alguma anomalia é descoberta, essas hipóteses do cinturão são modificadas ou substituídas, para proteger o núcleo. Essa regra constitui a eurística negativa, que resguarda o núcleo não-refutável. A eurística positiva constitui-se das sugestões, de certo modo vagas e imprecisas, de como modificar e desenvolver as hipóteses refutáveis do cinturão protetor. Essa irrefutabilidade, claramente, não é absoluta e tem limites. Os programas de pesquisa podem ser progressivos ou degenerantes, de acordo com o sucesso ou fracasso que tenham. Na história da ciência temos exemplos de teorias que durante certa época foram aparentemente refutadas, mas que depois, diante de novos dados, se mostraram corretas. Por isso, uma postura de confiança em nossas teorias é necessária. Vemos um exemplo claro disso na descoberta do planeta Netuno. As observações que tínhamos no século XIX do planeta Urano pareciam contrariar a mecânica newtoniana. Leverrier na França e Adams na Inglaterra supuseram a existência de um novo planeta, Netuno, para explicar o desvio na orbita de Urano que não condizia com o previsto pelo mecânica newtoniana.

 É mister diferenciar hipóteses auxiliares de hipóteses ad hoc. Nem toda hipótese auxiliar é ad hoc. Uma hipótese ad hoc não leva a novas consequências testáveis. Temos um exemplo disso na história da ciência. Os aristotélicos acreditavam que os corpos celestes eram esferas perfeitas, sem qualquer deformidade. Depois da invenção e utilização do telescópio, foi impossível negar as crateras na lua. Diante disso, um aristotélico supôs uma hipótese ad hoc de que a lua era coberta de um fluido invisível que cobria as tais crateras, fazendo da lua uma esfera perfeita. Quando eram perguntados como tal fluido poderia ser detectado, não sabiam como responder.

 Agora trataremos de Kuhn. Kuhn tinha a noção de paradigma, que embora similar ao conceito de programa de pesquisa tinha certas diferenças. É nessas similaridades que devemos prestar mais atenção. O conceito de paradigma ainda é discutido e abrange muita coisa, e pode-se dizer que só é apreendido quando se é exposto diretamente àquele modo de fazer ciência. Mas podemos resumir tais conceitos na seguinte forma. Um paradigma engloba uma ontologia, os métodos, hipóteses auxiliares, regras que direcionam a pesquisa futura. É toda uma visão de mundo que domina uma ciência durante certo tempo.

Fase pré-paradigmática:
 É quando determinada área do conhecimento ainda não tem um paradigma e, portanto não tem o objeto de pesquisa bem definido, não tem os métodos de pesquisa bem caracterizados e há ainda muitas discussões nessas questões fundamentais da ciência. Quando determinada área adquire um paradigma, se torna uma ciência e entra numa fase de ciência normal.

Ciência normal:
 Fase em que os cientistas vão trabalhar apenas naquele paradigma vigente, resolvendo os problemas e anomalias que surgem, os quebra-cabeças. O cientista normal é um solucionador de quebra-cabeças. Nesse período não haveria paradigmas concorrentes. Vemos aí uma diferença com o conceito de programas de pesquisas. Pra lakatos, sempre há programas de pesquisas concorrentes, que podem ser degenerantes ou progressivos. Ao contrário, para Kuhn, paradigmas concorrentes só surgiriam caso a comunidade cientifica não conseguisse resolver determinada anomalia, entrando num período de crise que poderia acabar desembocando numa revolução científica, que daria inicio a uma nova fase de ciência normal e assim por diante.

Incomensurabilidade:
Dois paradigmas rivais não podem ser comparados por meios lógicos, pois partem de princípios fundamentais diferentes, discordam da ontologia, da visão de mundo, das metodologias, dos termos, etc. As duas teorias são incomensuráveis. 

Rapidamente quero citar aqui outro filósofo da ciência relevante, Paul Feyerabend, e sua teoria anarquista, que negava uma metodologia científica única, afirmando que as regras científicas mudavam no decorrer do tempo e do caso de que está se tratando. Argumentava ele que nenhuma metodologia proposta até então havia conseguido se adequar completamente a história da ciência e que não era necessário conhecer as metodologias da ciência para fazer ciência. Era necessário somente o estudo daquela determinada área científica. A única regra que sempre se mantém é o vale-tudo.  

Kardec muito à frente de sua época:
 Kardec foi vanguardista em muitos pontos. Já em sua época defendia, por exemplo, a igualdade de direitos entre homens e mulheres, algo que ainda era dificultoso na época. Estudando a filosofia a filosofia da ciência podemos constatar que a visão de ciência de Kardec também estava à frente do seu tempo. Kardec tinha uma visão muito além daquela do século 19, mais condizente com a dos filósofos atuais, como Popper, Kuhn e Lakatos, o que vamos analisar aqui. Kardec não admitia o método indutivo como meio de chegar às leis e teorias gerais. A teoria espírita era a melhor por conseguir explicar todos os fatos, e as outras teorias propostas na época explicavam apenas parcialmente os fenômenos. Vejamos o que o mestre no diz na introdução de O Livro dos Espíritos:

“Poderíamos citar inúmeros fatos que demonstram, na inteligência que se manifesta, uma individualidade evidente e uma absoluta independência de vontade. Recomendamos, portanto, aos dissidentes, observação mais cuidadosa e, se quiserem estudar sem prevenções, e não formular conclusões antes de terem visto tudo, reconhecerão a impotência de sua teoria para tudo explicar”. 

Há três lugares aonde Kardec vai minuciosamente refutar as outras teorias e colocar a espírita como a única realmente válida para explicar os fatos. Na primeira parte da obra O que é o Espiritismo, na introdução de O Livro dos Espíritos e no Livro dos Médiuns, no capitulo IV, dos sistemas. É essencial a leitura desses textos para compreender como Kardec chegou a ciência espírita.

 Kardec em sua época analisou todas as outras hipóteses que haviam sido propostas na época. Primeiro ele pensou que o fenômeno podia ser explicado por um simples efeito do magnetismo. Mas ele percebeu que havia no fenômeno deliberação e intencionalidade. Usando o axioma, todo efeito inteligente tem uma causa inteligente, ele concluiu que os fenômenos espíritas deviam ter uma causa inteligente. Alguns propuseram que a inteligência vinha do próprio médium ou era um reflexo dos assistentes. Mas muitas das vezes a inteligência que se manifestava falava de coisas que o médium e os presentes da reunião ignoravam ou não tinham a capacidade de compreender. Kardec concluiu que a inteligência que se manifestava era estranha ao médium ou aos presentes. A teoria espírita era a única que conseguia explicar todos os fenômenos, enquanto as outras só conseguiam explicar parcialmente. A teoria espírita segue o procedimento científico que temos atualmente. Temos uma hipótese e passamos essa hipótese pelo controle da experiência. Essas inteligências mesmo revelaram ser a alma dos homens que viveram na terra ou em outros mundos. Enquanto os outros sistemas vinham da cabeça de encarnados, a teoria espírita foi revelada pela própria manifestação. Se formulassem uma teoria que pudesse explicar de forma mais adequada todos os fenômenos a teoria espírita seria superada. A tese espírita, portanto pode ser falseada, como diria popper. É falseável, isto é, passível de ser submetida a um experimento que pode prová-la falsa.

 Na época de Kardec muitos propuseram outras hipóteses para explicar os fenômenos espíritas, como eu disse acima. Uma delas até dizia que a comunicação que o médium dava era reflexo na verdade das inteligencias de todo mundo e até de outros mundos. Preferiam hipóteses muito mais complexas a simplicidade da teoria espírita. Usando a navalha de navalha de occam, podemos perceber que a hipótese espírita era a melhor por explicar todos os fenômenos e por ser a mais simples. A navalha de occam é um principio que diz que entre duas teorias que podem explicar um fenômeno a melhor é a mais simples, a que admite menor quantidade de pressupostos. Entre duas teorias com o mesmo poder explanativo pode-se usar a navalha de occam. Se um detetive quer resolver um caso e descobrir a razão da morte. Uma das hipóteses é que sujeito se matou pois ele estava com a arma na mão e consta apenas as digitais dele nela, e não há sinal de mais ninguém lá e nem de uma briga. Outra hipótese é que alguém forçou o sujeito a se matar sem deixar qualquer sinal. As duas têm o mesmo poder explanativo, conseguem explicar tudo, mas a primeira é mais simples, admite menos pressupostos.

Navalha de occam é usada em vários casos, até em medicina pra reconhecer o melhor diagnóstico. No caso do espiritismo que expliquei alguém poderia sugerir como sugeriram na época, que a comunicação do médium era fruto da consciência de toda humanidade e de outros mundos. Queriam admitir qualquer teoria, por mais absurda que fosse, menos a teoria espírita que não era fruto da imaginação humana, mas o próprio fenômeno havia revelado sua natureza. Kardec explica isso na introdução do LE. Vejamos o que se diz nessa obra:

"Respondem que a irradiação vai muito além do círculo imediato que nos envolve; o médium é o reflexo de toda a Humanidade, de tal sorte que se as inspirações não lhe vêm dos que se acham a seu lado, ele as vai beber fora, na cidade, no país, em todo o globo terráqueo e até nas outras esferas. Não me parece que em semelhante teoria se encontre explicação mais simples e mais provável que a do Espiritismo, visto que ela se baseia numa causa bem mais maravilhosa. A idéia de que seres que povoam os espaços e que, em contato conosco, nos comunicam seus pensamentos, nada tem que choque mais a razão do que a suposição dessa irradiação universal, vindo, de todos os pontos do Universo, concentrar-se no cérebro de um indivíduo". - LE XVI introdução

Imaginavam sistemas que, como dissemos, explicam apenas parcialmente os fatos, ignorando outros:
O erro da maior parte dos sistemas, que surgiram nos primeiros tempos do Espiritismo, está em haverem deduzido, de fatos insulados, conclusões gerais. O Livro dos Médiuns ou guia dos médiuns e dos evocadores > Primeira parte - Noções preliminares > Capítulo IV - Dos sistemas 45

 O espiritismo pode ser tratado como um programa de pesquisa, que possuí um núcleo duro de princípios fundamentais da ciência espírita: a imortalidade da alma, a pluralidade das existências e a comunicabilidade dos Espíritos. A existência de Deus, como inteligência suprema e causa primeira de todas as coisas fica com um axioma metodológico que orienta a ciência espírita. Embora existam sólidos argumentos filosóficos, não há uma prova definitiva da sua existência. Kardec vai colocar Deus e seus atributos como um critério de julgamento para qualquer área do conhecimento. Vejamos o que ele diz na obra Genese, capitulo 2, item 19:
“Tal também o critério infalível de todas as doutrinas filosóficas e religiosas. Para apreciá-las, dispõe o homem de uma medida rigorosamente exata nos atributos de Deus e pode afirmar a si mesmo que toda teoria, todo princípio, todo dogma, toda crença, toda prática que estiver em contradição com um só que seja desses atributos, que tenda não tanto a anulá-lo, mas simplesmente a diminuí-lo, não pode estar com a verdade. Em filosofia, em psicologia, em moral, em religião, só há de verdadeiro o que não se afaste, nem um til, das qualidades essenciais da Divindade. A religião perfeita será aquela de cujos artigos de fé nenhum esteja em oposição àquelas qualidades; aquela cujos dogmas todos suportem a prova dessa verificação sem nada sofrerem”.
  
 Tais princípios que constituem o núcleo da ciência espírita não foram refutados até o momento, sobrevivendo ao progresso da humanidade desde o século 19. A ciência espírita é, portanto um programa de pesquisa progressivo, não degenerante. Em contraposição, algumas ideias presentes na obra de Kardec mudaram ao decorrer de sua obra. Podemos observar isso bem nitidamente estudando comparativamente a primeira e a segunda edição de O Livro dos Espíritos. Na primeira edição dizia-se, por exemplo, que a união da alma com o corpo só ocorria no nascimento. Mas depois na segunda edição os Espíritos esclarecem que a união começa na concepção e só termina no nascimento, com o primeiro respirar da criança. Um exemplo interessante disso é a questão da possessão. Em O Livro dos Médiuns e no Livro dos Espíritos é dito que não há possessão no sentido de um Espírito habitar o corpo do médium. No entanto na revista espírita do ano de 1863, no mês de dezembro, no caso da senhorita Julia, Kardec muda de ideia afirmando:

“Dissemos que não havia possessos no sentido vulgar do vocábulo, mas subjugados. Mudamos de opinião sobre essa afirmativa absoluta, porque agora nos é demonstrado que pode haver verdadeira possessão, isto é, substituição, posto que parcial, de um Espírito encarnado por um Espírito errante”. 
Kardec nunca foi dogmático e sempre que uma ideia contida em suas obras era falseada, como diria Popper, pela experiência, ele se corrigia.

 A doutrina também pode ser vista como um paradigma, pois possuí todas as características exigidas para tal. Possuí uma ontologia, ou seja, uma visão da natureza da realidade. Possuí métodos e valores que guiariam a pesquisa futura do Espiritismo, e que no movimento espírita atual não tem sido seguidos muitas das vezes.  O pesquisador e espírita Silvio Chibini têm um excelente artigo disponível no site www.geeu.net.br/artigos onde ele esclarece muito bem essa questão e diz:

“Como uma indicação geral e aproximada, podemos dizer que O Livro dos Espíritos estabeleceu a ontologia e os princípios teóricos básicos; O Livro dos Médiuns e a segunda parte de O Céu e o Inferno efetuaram a conexão com a base experimental; O Evangelho segundo o Espiritismo e a primeira parte de O Céu e o Inferno exploraram as repercussões filosóficas do paradigma no campo da ética; {nota 3} A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo e ensaios diversos nas Obras Póstumas e Revista Espírita aprofundaram vários pontos da teoria, sendo que a Revista constitui também valioso repositório de relatos experimentais”.

Muitos crêem nos dias de hoje que o método científico se aplica apenas as coisas materiais. Kardec vai discordar disso em a Gênese dizendo:
“As ciências só fizeram progressos importantes depois que seus estudos se basearam sobre o método experimental; até então, acreditou-se que esse método também só era aplicável à matéria, ao passo que o é também às coisas metafísicas”. FONTE: A gênese os milagres e as predições segundo o Espiritismo > A gênese > Capítulo I - Caráter da revelação espírita > 14

Metapsíquica e parapsicologia:
A Metapsíquica foi criada por um médico fisiologista francês chamado Charles Robert Richet (1850-1935) que em 1913 ganhou o premio Nobel de medicina. Quando lançou sua obra mais famosa “Tratado de metapsíquica” o positivismo lógico estava no seu auge e, por conseguinte, exercia grande influência sobre a ciência. Em 1882 foi fundada em Londres a “Society for Psychical Research” reunindo cientistas e filósofos eminentes como William Crookes, William James e Henry Sidgwick. Depois a Parapsicologia (termo cunhado em 1889 por  Max Dessoir) foi gradualmente tomando o lugar da Metapsíquica, mas não conseguiu superar os problemas de uma visão ultrapassada de ciência. Embora essas correntes tenham surgido no movimento que foi chamado de moderno espiritualismo, cujo princípio basilar era a comunicabilidade com os Espíritos, hoje muitos parapsicólogos chegam a questionar a explicação espírita para os fenômenos mediúnicos, propondo explicações diversas, através de telepatia, reflexo do pensamento dos presentes na reunião, etc. Na realidade, como demonstramos acima, muitos desses questionamentos já foram respondidos por Kardec em sua época. 

Preferem utilizar-se de métodos estatísticos, ao invés das provas oferecidas pelo espiritismo, das comunicações inteligentes que demonstram informações sobre familiares que o médium não poderia saber, das manifestações materiais estudadas por diversos pesquisadores, da estrutura lógica pelo qual Kardec organizou o edifício da ciência espírita. Em epistemologia, muitos filósofos concordam que observações diretas, que não requerem o uso de aparelhos ou técnicas especificas, têm uma maior validade epistêmica. Uma teoria que faz uso de aparelhagens, por exemplo, requer um número muito maior de pressupostos, que envolvem as teorias envolvidas naquele aparelho, que as teorias que dependem da simples observação.


Espiritismo não é da alçada da Ciência:
 Algumas pessoas compartilham nas redes sociais ou em palestras a seguinte frase que seria supostamente de Kardec: “Se algum dia a ciência provar que o Espiritismo está errado em algum ponto, fique com a ciência”. Esse trecho não existe na obra de Kardec e tal frase nunca foi afirmada por ele. Kardec diz algo semelhante na Gênese, porém não a mesma coisa. Ele diz: "Caminhando de par com o progresso, o Espiritismo jamais será ultrapassado, porque, se novas descobertas lhe demonstrassem estar em erro acerca de um ponto qualquer, ele se modificaria nesse ponto. Se uma verdade nova se revelar, ele a aceitará". Gênese - capitulo 1 - item 55. É diferente da outra frase. Essa primeira frase é contrariada por afirmações do próprio Kardec, pois ele afirma que as ciências da matéria (física, química, biologia, etc) não podem se pronunciar sobre o espiritismo, pois o objeto de estudo é outro, da mesma forma que a biologia não pode se pronunciar sobre a física, por exemplo, a não ser nos pontos de contato entre uma ciência e outra. Vejamos: “A Ciência, propriamente dita, é, pois, como ciência, incompetente para se pronunciar na questão do Espiritismo: não tem que se ocupar com isso e qualquer que seja o seu julgamento, favorável ou não, nenhum peso poderá ter. O Espiritismo é o resultado de uma convicção pessoal, que os cientistas, como indivíduos, podem adquirir, abstração feita da qualidade de cientistas. Pretender deferir a questão à Ciência equivaleria a querer que a existência ou não da alma fosse decidida por uma assembléia de físicos ou de astrônomos. Com efeito, o Espiritismo está todo na existência da alma e no seu estado depois da morte. Ora, é soberanamente ilógico imaginar-se que um homem deva ser grande psicologista, porque é eminente matemático ou notável anatomista. Dissecando o corpo humano, o anatomista procura a alma e, porque não a encontra, debaixo do seu escalpelo, como encontra um nervo, ou porque não a vê evolar-se como um gás, conclui que ela não existe, colocado num ponto de vista exclusivamente material. Segue-se que tenha razão contra a opinião universal? Não. Vedes, portanto, que o Espiritismo não é da alçada da Ciência".
Livro dos Espíritos - Introdução Vll

Outro erro é crer que se possa fazer experiências em Espiritismo como se faz em Quimica ou em Física. Os espíritos não são matéria, que se pode manipular a vontade. São seres livres, que não estão sujeitos aos nossos caprichos. Portanto, não se podem produzir os fenômenos espíritas a hora que queremos, é preciso esperar que ocorram e apanha-los no momento certo. É isso que Kardec nos esclarece, vejamos:
“A quem deseja instruir-se, direi: “Não se pode fazer um curso de Espiritismo experimental como se faz um de Física ou de Química, atento que nunca se é senhor de produzir os fenômenos espíritas à vontade, e que as inteligências desses agentes fazem, muitas vezes, frustrarem- se todas as nossas previsões. Aqueles que acidentalmente poderíeis ver, não apresentando nexo algum, nem ligação necessária, seriam pouco inteligíveis para vós”.
FONTE: O que é o Espiritismo? > Capítulo I - Pequena conferência espírita > Primeiro diálogo - O crítico

Revelação científica e divina:
 No primeiro capítulo da obra a Gênese Kardec vai tratar de um assunto de suma importância. O Espiritismo é uma revelação, e caso for, qual a natureza da revelação espírita? Kardec vai responder afirmativamente dizendo que o Espiritismo é uma revelação ao mesmo tempo científica e divina. É divina, pois é de iniciativa dos Espíritos encarregados por Deus de esclarecer os homens, e científica, pois não é dispensada a análise e a elaboração dos homens. Kardec e os Espíritos elevados sempre nos alertaram a passar tudo que vem do mundo espiritual pelo crivo da razão. Erasto em uma de suas dissertações na revista espírita de agosto de 1861 nos diz: “Mais vale repelir dez verdades que admitir uma só mentira, uma só teoria falsa. Com efeito, sobre essa teoria poderíeis edificar todo um sistema, que se esboroaria ao primeiro sopro da verdade, como um monumento construído sobre areia movediça, ao passo que se hoje rejeitardes certas verdades”. 

O Espiritismo é, portanto uma doutrina construída tanto pelos homens, principalmente Kardec, quanto pelos Espíritos. Kardec é um dos criadores da doutrina, junto com os Espíritos chefiados pelo Espírito da Verdade (Jesus). Era o encarnado mais elevado em sua época, um espírito superior, da nona classe da segunda ordem da escala espírita.

Referências:
O que é ciência, Chalmers.
Sabedoria Espírita, Daniel Araújo Lima.
O que é ciência, Silvio Seno Chibeni.
O paradigma espírita, Silvio Seno Chibeni.
O que é sistema?


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