O Espiritismo é uma religião?


Ainda há no meio espírita muito questionamento quanto a isso. Há um artigo na Revista Espírita, de dezembro de 1868, num dos discursos de Allan Kardec, onde ele propõe-se a responder essa questão (https://www.kardecpedia.com/roteiro-de-estudos/902/revista-espirita-jornal-de-estudos-psicologicos-1868/6330/dezembro/sessao-anual-comemorativa-dos-mortos). Kardec nesse caso, como em outros, vai perceber a polissemia, a anfibologia da palavra religião. Há, segundo os especialistas, dois tipos de polissemia: assimétrica e simétrica (ver sobre isso a obra Os Espíritos e os Homens, terceiro diálogo, de Cosme Massi). Na polissemia simétrica não há sentido dominante. É o caso da palavra manga, que pode significar tanto a manga da camisa quanto a fruta. Já na assimétrica, há um sentido dominante. É o caso da palavra religião, que no sentido dominante está necessariamente ligada a ideia de culto exterior, de forma, de sacerdócio, de dogmas, que o espiritismo não possui. Mas há um sentido mais incomum, o sentido etimológico. Religião vem do latim, “religare.” Nesse sentido, que Kardec no artigo precitado chamado de sentido filosófico, religião passa a ideia de laço, de comunhão de pensamentos e se sentimentos. Numa assembléia onde todos estão com o pensamento num foco comum, há esse laço que os une numa mesma ideia. Vejamos como Kardec trata essa questão:

“Dissemos que o verdadeiro objetivo das assembléias religiosas deve ser a comunhão de pensamentos; é que, com efeito, a palavra religião quer dizer laço. Uma religião, em sua acepção ampla e verdadeira, é um laço que religa os homens numa comunhão de sentimentos, de princípios e de crenças. Consecutivamente, esse nome foi dado a esses mesmos princípios codificados e formulados em dogmas ou artigos de fé. É neste sentido que se diz: a religião política. [...] O efeito desse laço moral é o de estabelecer entre as pessoas que ele une, como consequência da comunhão de vistas e de sentimentos, a fraternidade e a solidariedade, a indulgência e a benevolência mútuas. É nesse sentido que também se diz: a religião da amizade, a religião da família. [...] Se assim é, perguntarão, então o Espiritismo é uma religião? Ora, sim, sem dúvida, senhores; no sentido filosófico, o Espiritismo é uma religião, e nós nos glorificamos por isto, porque é a doutrina que funda os laços da fraternidade e da comunhão de pensamentos, não sobre uma simples convenção, mas sobre as mais sólidas bases: as próprias leis da Natureza.”

Vemos que nesse sentido se poderia também falar de religião política, onde pessoas de um mesmo partido tem uma ideia em comum que une seus pensamentos, ou de religião da família ou da amizade. Qualquer coisa que une as pessoas numa ideia em comum poderia ser chamada de religião. Vemos que esse sentido é pouco usado hoje e mesmo na época de Kardec, o que fez com que ele muitas das vezes definisse o espiritismo apenas como uma ciência e uma filosofia, para não ser mal interpretado. Vejamos:

“Por que, então, temos declarado que o Espiritismo não é uma religião? Porque não há uma palavra para exprimir duas ideias diferentes, e porque, na opinião geral, a palavra religião é inseparável da ideia de culto; porque ela desperta exclusivamente uma ideia de forma, que o Espiritismo não tem. Se o Espiritismo se dissesse religião, o público não veria aí senão uma nova edição, uma variante, se quiserem, dos princípios absolutos em matéria de fé; uma casta sacerdotal com seu cortejo de hierarquias, de cerimônias e de privilégios; ele não o separaria das ideias de misticismo e dos abusos contra os quais tantas vezes a opinião pública se levantou. Não tendo o Espiritismo nenhum dos caracteres de uma religião, na acepção usual do vocábulo, não podia nem devia enfeitar-se com um título sobre cujo valor as pessoas inevitavelmente ter-se-iam equivocado. Eis por que simplesmente se diz: doutrina filosófica e moral.”

Se o Espiritismo fosse uma religião no sentido usual do termo, não poderia ser ao mesmo tempo ciência, pois a ciência não é dogmática. Por isso, quando se fala em tríplice aspecto, é preciso deixar claro em que sentido se está falando de religião. Espiritismo é ciência, filosofia e religião (no sentido filosófico). Quando estamos numa reunião em que estão presentes pessoas que nos são simpáticas, que comungam de nossos pensamentos, sentimentos e crenças, nos sentimos bem, num ambiente harmônico. Quando, ao contrário, estamos num ambiente de cisões, de sentimentos opostos e de pensamentos conflitantes, a sensação que nos causa não é agradável. É isso que Kardec nesse artigo vai explicar através da lei dos fluidos. Vejamos o que se diz:

“O pensamento age sobre os fluidos ambientes, como o som age sobre o ar; esses fluidos nos trazem o pensamento, como o ar nos traz o som. Podemos dizer, portanto, com plena certeza, que há, nesses fluidos, ondas e raios de pensamentos que se cruzam sem se confundirem, como há no ar ondas e raios sonoros. Uma assembleia é um foco onde se irradiam pensamentos diversos; é como uma orquestra, um coro de pensamentos em que cada um produz a sua nota. Resulta daí uma porção de correntes e de eflúvios fluídicos, cada um dos quais recebe a impressão pelo sentido espiritual, como num coro de música cada um recebe a impressão dos sons pelo sentido da audição. Mas, assim como há raios sonoros harmônicos ou discordantes, também há pensamentos harmônicos ou discordantes. Se o conjunto for harmônico, a impressão será agradável; se for discordante, a impressão será penosa.”

Sabemos que o pensamento interfere na qualidade dos fluidos perispirituais e ambientes. Dessa forma podemos entender que fluidos similares se atraem e fluidos harmônicos se atraem. Numa reunião onde reina um pensamento harmônico, os fluidos se atraem e formam como uma orquestra bem organizada. Caso contrário acontece num ambiente de discordância, onde os fluidos se repelem mutuamente. O mesmo que ocorre de encarnado para encarnado ocorre de encarnado para espíritos. Um pensamento no bem atrai bons espíritos e seus bons eflúvios fluídicos.  É por isso que Jesus Cristo diz em Mateus 18, 20: “Quando diversos de vós estiverdes reunidos em meu nome, eu estarei entre vós.” Quando nos reunimos com um pensamento em comum no bem, no pensamento de caridade, nos reunimos em nome de Jesus, e atraímos o concurso dos bons Espíritos.

O Espiritismo é o mais poderoso auxiliar da religião. Ele, como vai dizer o próprio Kardec no item 5 da conclusão de O Livro dos Espíritos “é forte porque assenta sobre as próprias bases da religião: Deus, a alma, as penas e as recompensas futuras.” Todos os cultos têm como base esses princípios.  Ele é o elo que liga a religião e a ciência material. Kardec na obra O Evangelho segundo o Espiritismo, no item 8 do primeiro capitulo vai nos dizer:

“A Ciência e a Religião não puderam, até hoje, entender-se, porque, encarando cada uma as coisas do seu ponto de vista exclusivo, reciprocamente se repeliam. Faltava com que encher o vazio que as separava, um traço de união que as aproximasse. Esse traço de união está no conhecimento das leis que regem o Universo espiritual e suas relações com o mundo corpóreo, leis tão imutáveis quanto as que regem o movimento dos astros e a existência dos seres. Uma vez comprovadas pela experiência essas relações, nova luz se fez: a fé dirigiu-se à razão; esta nada encontrou de ilógico na fé: vencido foi o materialismo.”

Se o Espiritismo fosse religião no sentido usual do termo, não poderia ser o elo de união entre as duas coisas. Seria apenas mais um culto, com seus dogmas e rituais. Ao contrário, a doutrina dá apoio aos religiosos, pois comprova peremptoriamente a existência e a imortalidade da alma, base de todas as religiões. Prova disso é que havia pessoas de diferentes cultos na sociedade parisiense presidida por Kardec.  Vejamos o que Kardec diz em O que é o Espiritismo, no dialogo com o padre:

“Seu verdadeiro caráter é, pois, o de uma ciência e não de uma religião; e a prova disso é que ele conta entre os seus aderentes homens de todas as crenças, que por esse fato não renunciaram às suas convicções: católicos fervorosos que não deixam de praticar todos os deveres do seu culto, quando a Igreja os não repele; protestantes de todas as seitas, israelitas, muçulmanos e mesmo budistas e bramanistas.”

Eric Pacheco
https://www.facebook.com/erictpz

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